As dificuldades que se colocam para muitos eleitores em ir votar e, para outros, em subscreverem uma das perguntas do referendo do aborto, julgo estar bastante associada à falta de uma maior transparência de todas as consequências que um SIM ou um NÃO comportará.
A defesa de cada uma daquelas opções tem-se refugiado, salvo honrosas excepções, nos lugares comuns que pouco esclarecem e muito irritam, pela sua repetição até à exaustão.
Infelizmente, não houve discernimento político para se propor, discutir e aprovar uma “Lei do Aborto” que fosse, posteriormente, colocada em escrutínio universal, através do referendo.
Numa lei desse tipo, ficaria claro o que pensava a maioria do poder político e do poder legislativo. Também ficavam afastadas hipóteses de inconstitucionalidade com o parecer do Tribunal respectivo.
A resposta ao referendo seria, na mesma, um SIM ou um NÃO. Só que a um pacote completo de novas medidas e alteração e supressão de outras existentes. Poderiam existir discordâncias parciais, mas saber-se-ia tudo, ou quase tudo, que o resultado do referendo implicaria. Seria, por isso, um voto plenamente consciente. Sabedor. Convicto. Seguro.
Seria um voto com o conhecimento provável de como, no futuro, seriam reguladas, por exemplo, as seguintes situações:
1 - Uma menor pretende abortar. Tem direito de o fazer sem consentimento dos pais? Pode fazê-lo só com o consentimento do pai ou da mãe?
2 - Em que condições é o aborto considerado crime?
3 - Sendo considerado crime a pena é de prisão?
4 - A mulher tem que justificar o aborto?
5 - Existirá uma consulta de aconselhamento? Exame ginecológico? Período de reflexão?
6 - Quem são as entidades que realizam as consultas de aconselhamento? São nomeadas? Podem recusar-se? Oferecem-se? Regime exclusivo? São remuneradas? São apenas médicos? De várias especialidades?
7 - É eliminado o artigo actual que atribui a dois médicos a competência para verificarem se existem, ou não, os pressupostos para que o aborto não seja punido?
8 - As pessoas com rendimentos acima de determinado patamar também têm o aborto gratuito?
9 - A decisão de abortar exclui, em todos os casos, o homem? Exige que, pelo menos, tenha conhecimento da intenção da mulher?
10 - O homem que entende que a mulher deve abortar tem direito a não ser responsabilizado pelo futuro ser humano se a mulher der continuidade à gravidez?
11 - A opinião diferente sobre o aborto pode ser causa justificativa de divórcio?
12 - O feto abortado será sujeito a análise de ADN? Pode o homem usar esse exame como prova de adultério?
13 - Os médicos poderão recusar-se a realizar um aborto?
14 - Os médicos, parteiras e outros elementos que realizem abortos clandestinos verão agravada a sua punição, num quadro legal que os permita realizar em condições claras?
15 - Existirão registos dos abortos realizados? E de quem os praticou? São sigilosos? Que razões poderão levantar o sigilo?
16 - As condições de registo serão iguais nos locais públicos e nos privados convencionados?
17 - Que razões são aceites para que uma mulher possa recorrer à clínica privada e não ao hospital público? Como se controlará isso?
18 - Qual o valor limite do apoio financeiro do estado aos abortos realizados em clínicas privadas convencionadas?
19 - Haverá limite para os abortos praticados por uma mesma mulher?
20 - As despesas de realização de um aborto que ultrapassem o limite do apoio do estado são aceites para efeito de IRS, como as restantes despesas de saúde?
21 - Haverá penalização específica e automática para quem publicite (jornais, internet, etc.) o nome das mulheres que realizaram um aborto, no caso de este ser considerado confidencial?
Certamente mais dúvidas existirão. Os políticos são pagos para se preocuparem com as perguntas e as suas respostas. Até hoje, se alguma preocupação tiveram, não a tornaram pública. Nem os movimentos que são muitos e pouco dizem a respeito.
Sem respostas anteriores ao referendo, sinto-me incapaz de tomar uma posição, para além daquela que o dever cívico me impõe: ir votar. Em branco. Para informar de que não me é indiferente o problema. Mas que não passo cheques em branco a ninguém. Do SIM ou do NÃO.
Há coisas que, por demasiado importantes, não justificam a teoria da redução de danos. Da teoria do mal menor.
Como diz Mário Soares:
“Se o não ganhar não é nenhuma tragédia. (...) Tudo ficará igual, eu acho que é mau, mas é assim. A democracia tem preços e esse é um deles.”